Elaine Assolini
Uma
das questões que tem sido objeto regular de pesquisa de diferentes áreas do
conhecimento, dentre elas as Ciências da Educação, diz respeito às relações que
educadores e educandos estabelecem com o conhecimento.
Nessa
perspectiva, venho me debruçando sobre as relações que tais sujeitos constroem
com a leitura, objeto de minhas pesquisas desde sempre. Mais recentemente, há
cerca de seis anos, concentrei minhas investigações sobre as condições de
produção em que essa prática cultural, esse processo
sócio-histórico-ideológico, que é também intertextual, dialógico e plurissêmico
- a leitura - concretiza-se no Ensino Superior, especialmente nos cursos de
licenciatura, onde ministro aulas há muitos anos.
Gostaria de
compartilhar com os leitores apenas dois dos muitos e mais amplos resultados de
meus estudos sobre tais relações e suas consequências e implicações para os
processos de ensino-aprendizagem, aquisição de conhecimentos e formação
profissional no Ensino Superior.
Uma das
considerações diz respeito às circunstâncias favoráveis, construídas pelo
próprio sujeito-estudante e pelo próprio sujeito-professor, para que possam
ocupar o lugar de intérprete; ou seja, o lugar de um sujeito que lê, que
“deslê’, que dialoga, a partir de seus próprios pontos de vista, argumentos e
repertório de conhecimentos e saberes escolares e não escolares. Por condições
de produção (circunstâncias) favoráveis, consideramos espaços discursivos
caracterizados pela não censura e pela não interdição. Sabemos que essas sempre
existirão, afinal somos sujeitos da ideologia e do inconsciente, como tão bem
nos mostram a Análise de Discurso de matriz francesa e a Psicanálise. Porém,
quando tais espaços se abrem, é possível observar que tanto os estudantes
universitários quanto os docentes experimentam o sabor de (se) dizerem, de (se)
inscreverem nas mais diferentes posições e, a partir delas, deixam emergir sua
subjetividade, uma das condições básicas para a emergência da autoria, como
mostro em outros trabalhos. Nesses espaços discursivos, que não se restringem à
sala de aula propriamente dita, vigoram mais o discurso lúdico e com ele a literatura,
a música, a linguagem midiática, ou “apenas” um encontro singular, no qual
educador e educando podem, de fato, olharem-se nos olhos, papear e, sobretudo,
escutar o que o outro tem a dizer. Caro(a) leitor(a), não entenda o
significante “papear” no sentido de “jogar conversa fora”, pois a ele subjazem
possibilidades ímpares para que ambos, de fato, interajam, se conheçam,
estranhem-se e incomodem-se com o que lhes cerca; muitas vezes sequer notado ou
percebido, no dia a dia da sala de aula. Importa dizer que tais espaços
efetivam-se principalmente em grupos de estudos e pesquisas, cursos
extracurriculares, situações de supervisão de estágio, encontros para o preparo
de atividades acadêmicas e culturais e reuniões de orientação ou, ainda, em
outros por eles mesmos organizados. Neles, o sujeito, ao pronunciar “eu”, é
convocado a lembrar-se de que é constituído por muitas vozes, inúmeros outros
sujeitos e diferentes discursos. Relações afetivas amorosas e positivas com o
conhecimento e com a leitura são (res)significadas aqui. O encontro com sua
própria história, com as suas identidades, compreendido por nós como
“identificações” (cf. HALL, 2000), com as suas angústias e perspectivas
profissionais mobilizam o sujeito-estudante universitário a rever-se e a repensar
seus modos de aprender, dando-se conta também de que precisa do outro para
aprender. Essa interação-parceria, estudante e docente, desejosos e disponíveis
para ensinar e aprender e para aprender e ensinar é, portanto, fator basilar
para que possam contrapor-se tanto às imposições da instituição escolar – que,
apesar de todas as denúncias, ainda é marcada, em muitos casos, por traços da
pedagogia jesuítico-napoleônica – quanto pelas advindas de uma sociedade
pós-moderna, que leva o sujeito a crer que a aprendizagem não exige dedicação,
empenho, perseverança. Vende-se a ideia de que aprendizagem constroi-se sem
esforço algum; é fácil e rápido aprender. Assujeitado, confuso e sem saber
diferenciar acúmulo de informações, conhecimento e saber, o estudante, muitas
vezes, permanece na condição de enunciador de sentidos que pouco lhe afetam.
Sentidos que não ecoam, não reverberam em sua memória discursiva.
Outro
aspecto assinalado nos resultados das pesquisas refere-se às experiências na
sala de aula nas quais o docente-educador dedica um tempo da aula de “sua”
disciplina para ler um texto acadêmico-científico junto com os estudantes. Essa
prática didático-pedagógica é denominada por Barthes (1977) “trabalho por
lexias”. Nessa proposta, penetra-se no texto, gradativamente, buscando
compreender as cadeias de sentidos. Em alguns casos, as lexias compreendem
frases inteiras; em outros, breves segmentos; nos demais casos, seções ou
recortes do documento em estudo. De qualquer forma, é possível observar a
preocupação com a “linguagem em funcionamento” (ORLANDI, 1983) e com os
postulados segundo os quais um texto não tem um sentido único, óbvio, posto,
mas é sempre espaço de dimensões múltiplas, produzindo e relançando sentidos
vários. Nessa direção, a língua é concebida como não transparente, sujeita ao
deslize, à ambiguidade. Nessas condições de produção, o docente, sabedor de que
se faz necessário um trabalho pedagógico através do qual conduz o estudante,
paulatinamente, a níveis mais profundos e densos de entendimento, assume a
posição de um sujeito que pauta seu fazer educacional no pressuposto de que o
estudante irá aprender de forma prazerosa, o que irá repercutir no processo de
aquisição de conhecimentos, de maneira ampla. Ressalto que esses
sujeitos-professores são leitores assíduos, dos mais diferentes gêneros
discursivos. Sentem prazer no exercício de sua profissão e estão em
ininterrupto processo de formação continuada.
É, portanto,
no âmbito dessas condições de produção, nas quais o discurso pedagógico autoritário
não repercute, que podemos observar não apenas a constituição de leitores, mas
também a de sujeitos-autores, responsáveis pelo seu próprio dizer.
É desejável,
portanto, que o Ensino Superior e os cursos de Licenciatura, responsáveis pela
formação de professores, assegurem o direito à palavra, à leitura e à
interpretação aos estudantes, em processo de preparação profissional para a
docência. Cuidar para que tal direito se consolide é um dos caminhos exequíveis
para que esses cursos possam alcançar níveis cada vez mais elevados de
excelência sem a qual se torna difícil projetarmos um futuro, no qual os
profissionais por nós formados possam, de fato, contribuir para a edificação de
uma sociedade sensível e aberta, em busca de alternativas para as demandas,
exigências e desafios que se nos apresentam, diariamente.
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