Profa. Elaine Assolini - GEPALLE (Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização, Leitura e Letramento) USP - Ribeirão Preto - SP. |
Parece que já é sabido pelos professores alfabetizadores que não basta apenas alfabetizar. É, preciso, também, letrar.
Esse entendimento motiva-nos a discorrer sobre os fenômenos da alfabetização, do letramento e, também, sobre a proposta pedagógica Alfabetizar-Letrando.
Cumpre ressaltar que nos filiamos à Teoria Sócio-Histórica do Letramento, tal como concebida por TFOUNI (1994, 1995, 1997,1998, 2010, 2013, 2015). A teoria por ela formulada tem suas bases teóricas na Análise de Discurso de Matriz Francesa (pecheuxtiana) e na Psicanálise Freudo-Lacaniana.
Uma das contribuições da pesquisadora é elucidar a diferença entre alfabetização e letramento. Esse se ocupa das transformações que envolvem uma sociedade como um todo, quando essa faz uso amplo da escrita. Como consequência, podemos entender que, em uma sociedade letrada como a nossa, todos os indivíduos sofrem a influência, mesmo que indiretamente, da escrita. Sendo assim, não há como pressupor indivíduos agráfos ou iletrados, posto que, todos nós, em diferentes graus, obviamente, possuímos saberes sobre a escrita. Somos todos letrados, em diferentes níveis, portanto.
O letramento, cumpre ressaltar, focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade, observando as mudanças sociais e discursivas quando ela se torna letrada. Os estudos sobre o letramento não se restringem a pessoas alfabetizadas, vão além, buscam investigar aqueles que ainda não dominam a escrita, os não alfabetizados. As investigações abarcadas pelo letramento não se restringem a dimensões individuais ou particulares, mas, isto sim, concentram-se no social (cf. TFOUNI, 1995).
A alfabetização, por sua vez, relaciona-se ao processo de aquisição individual de habilidades requeridas para a leitura e escrita, como é o caso das proposições dos métodos tradicionais (sintético, fonético) ou, ainda, como processo de representação de objetos diversos, de naturezas diferentes, como propõe a Psicogênese da Língua Escrita, pensada por Ferreiro e Teberosky.
É pertinente observar que, tanto os métodos tradicionais de alfabetização quanto a proposta da Psicogênese, que se dispõe a descobrir o sujeito cognoscente, ou seja, aquele que procura ativamente compreender o mundo que o rodeia e responder às interrogações que esse mundo traz, não consideram um aspecto fundamental relacionado à alfabetização, qual seja: a sua incompletude.
Em ambos os casos tem-se a ilusão ou ideia equivocada de que a alfabetização chegaria a um fim, quer no momento em que o sujeito viesse a dominar sílabas, palavras, pequenas frases ou produzisse pequenos textos, quer quando se tem um trabalho pedagógico que busca fazer o sujeito deslocar-se dos níveis em que se encontra, indo do nível pré-silábico ao alfabético.
Contrapondo-se a esse entendimento, entendemos, em concordância com Tfouni (1995), que o melhor seria não falar em alfabetização simplesmente, como se houvesse um começo, um meio e um fim, mas, isso sim, pensarmos em graus ou níveis de alfabetização, o que nos permitirá observar os diferentes movimentos do sujeito e seus avanços ou limitações.
Tendo discorrido brevemente sobre a alfabetização e o letramento, iremos nos concentrar na proposta pedagógicaAlfabetizar-Letrando, formulada por Tfouni, no início dos anos noventa. De acordo com a autora, o processo de alfabetização letrada pode ser levado a efeito “(...) tanto pela inserção de práticas de leitura e escrita em contextos cognitivos e comunicativos de experiência partilhada quanto pelo conhecimento da criança sobre portadores de texto que estão servindo a essas práticas letradas num dado momento histórico (TFOUNI, 1994, p.6). Ainda, de acordo com a pesquisadora, “(...) esse processo permite que a criança se torne um ativo participante na conversação histórica de sua cultura” (TFOUNI, 1994, p.6).
Desde o ano 2003, vimos aprimorando a proposta formulada por Tfouni (1994). Uma das questões por nós reforçadas diz respeito à realização de práticas pedagógicas escolares que procuram mostrar aos alunos a finalidade da escrita, sua utilidade prática e social, em um dado momento histórico. Mostrar a finalidade e a utilidade da escrita não significa desenvolver atividades pedagógicas que se restrinjam a mostrar, recortar e colorir rótulos de embalagens, bulas de remédio, impressos de contas de água e luz, por exemplo. É preciso mostrar as características socioculturais desses portadores de texto, bem como o seu funcionamento ideológico e discursivo. Para tanto, o professor, juntamente com os alunos, precisa compreender o texto como objeto simbólico e, assim, desconstruir o seu funcionamento ideológico.
Vimos insistindo, também, em um trabalho pedagógico diário que instigue a produção linguística, oral ou escrita. É imprescindível que sejam oferecidas oportunidades para que os alunos ocupem diferentes posições nos textos por eles produzidos, o que lhe permite expressar sua subjetividade, suas emoções, sentimentos, a partir do interdiscurso que os constitui.
É essencial também que o professor se preocupe em desenvolver atividades didático-pedagógicas que proporcione condições favoráveis de produção para o desenvolvimento da oralidade. Trabalhar a oralidade, em sala de aula, envolve ensinar o aluno a escutar e a se escutar. Alguns professores restringem o trabalho com a oralidade a situações em que o aluno se expressa oralmente, esquecendo-se da importância da escuta. Levar os alunos a compreenderem que os nossos dizeres produzem diferentes efeitos de sentido contribui para que se tornem alfabetizados e letrados.
Essas são algumas das muitas atividades que o professor pode desenvolver em sala de aula para alfabetizar o estudante de maneira a torná-lo letrado. Muitas outras são conhecidas e praticadas pelos professores, certamente.
De qualquer forma, na contemporaneidade, é preciso ir além da alfabetização, posto que todos o alunos chegam à escola já tendo alcançado algum nível de letramento. Além disso, alunos alfabetizados e letrados são capazes de duvidar, estranhar e questionar o contexto sócio-histórico no qual se insere, os sentidos que lhes são disponibilizados, os acontecimentos à sua volta e a sua própria responsabilidade como sujeito cujos dizeres e ações não são neutras.
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