(RE)VISITANDO A POESIA CAMONIANA: INTERTEXTUALIZANDO
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície inata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
(Carlos
Drummond de Andrade)[1]
A poesia sempre foi a “menina dos meus
olhos”. Lembro-me de passar horas, desde ainda criança, lendo poemas. Uma de
minhas tias (tia Maria), professora de primeira a quarta-série (que hoje chamamos de PEB-I), me presenteou
com vários livros de poemas, dentre eles, Vinicius de Moraes e Cecília
Meireles. Lia muito. Às vezes eu os lia em voz alta, no entanto, eu gostava
mais quando minha tia lia para mim – hoje sei que era pelas características
próprias do gênero: pela entonação, pela impostação da voz, pelo ritmo –
chegava a decorá-los. Outras vezes, não entendia o que o poema queria dizer –
isso ocorreu quando ganhei um livro de poemas de Augusto dos Anjos -, as ideias
pareciam-me confusas (sentia-o, apenas), mas, segundo relatos posteriores da
minha tia, isso, naquele momento, parecia não importar muito para mim.
Importava sim, o fascínio que eu tinha pela construção dos poemas (a estrutura,
as rimas etc.), pelos jogos de palavras (seleção e combinação), pela sonoridade
(ritmo / musicalidade) etc. A minha paixão pela poesia/poemas fez com que eu
guardasse em um caderno de capa dura de duzentas folhas, o qual eu intitulei de
“Meu caderno de versos e poemas”, os meus favoritos.[2]
Incluo, portanto, dentro dos meus poetas
favoritos (que não são poucos), Luís Vaz de Camões (1524 (?) -1580),
poeta português do Classicismo/Renascimento e um dos maiores escritores da
literatura universal, autor de vários textos literários pelos quais nutro
grande admiração. Camões foi imortalizado por conta da obra Os
Lusíadas, considerada a maior epopéia do Renascimento, a qual retrata
os grandes feitos de Portugal no que tange à expansão marítima (as grandes
navegações), em especial a viagem de Vasco da Gama. Porém, minha admiração por
este autor pousa também e, mais especialmente, sobre a sua obra lírica - os sonetos camonianos -, que são os meus
preferidos.
Cultivando o meu grande amor pela poesia,
pude presenciar in loco a geração do
final dos anos oitenta e decorrer dos anos noventa, embalada pelo rock nacional de bandas que conquistaram
em especial o público jovem, porém, acabaram por atingir outras faixas etárias.
A minha empatia por bandas como “Legião Urbana”, “Capital Inicial”, “Titãs”,
“Paralamas do Sucesso”, dentre outras, perpassa por dois momentos: o primeiro, próprio
da adolescência, da juventude, que é a necessidade de se rebelar (com ou sem motivo)
- nesse caso a razão de toda a “rebeldia” era a luta contra a opressão e pela
plena conquista da liberdade -, e por último, pelo meu incrustado romantismo
vislumbrado na poesia contida nas letras das músicas de alguns poetas geniais,
como Renato Russo[3] (ver biografia)[4], por exemplo. Não é por acaso que sua voz passou a ser a voz
de tantos jovens e, até hoje, ainda ecoa vigorosamente.
Antes
da formação da banda Legião Urbana, Renato Russo fazia parte de uma outra
banda, a Aborto Elétrico.
O primeiro álbum da banda Legião Urbana foi lançado em
janeiro de 1985. Todas as letras são da autoria de Renato Russo e denotam, em
sua maioria, aspectos da política, das drogas, do amor e do desamor. É possível
perceber como característica dos versos de Renato Russo, uma relação intrínseca
com a estética de antigos poetas e um tom de romantismo que os envolve e,
ainda, o uso do discurso direto. Isso se confirma se pensarmos na música Eduardo
e Mônica[5],
a qual enfatiza, nas entrelinhas, que o amor é capaz de superar todas as
diferenças, atrelando-se às características de poetas românticos: “Quem
um dia irá dizer / Que existe razão / Nas coisas feitas pelo
coração? / E quem irá dizer / Que não existe razão?”.
Mas, foi
em novembro de 1989, com o lançamento do disco “As quatro estações” que não só eu, mas acredito que uma grande
legião de admiradores do trabalho da banda Legião Urbana pode perceber o brilhantismo
das suas composições, em especial, na música Monte Castelo, marcada
por intertextualidades com a lírica de Camões e com muitas antíteses: “Amor é fogo que arde sem se ver. / É ferida que dói e não se
sente. / É um contentamento descontente. / É dor que desatina sem doer.” e trechos bíblicos (I
carta de São Paulo aos Coríntios): “Ainda que
eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse Amor, (...) , e
ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não
tivesse Amor, nada seria. (...) Porque agora vemos por espelho em enigma, mas
então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como
também sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes
três; mas o maior destes é o Amor.”
Monte Castelo[6]
Legião
Urbana
Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos,
Sem amor eu nada seria.
É só o amor! É só o amor
Que conhece o que é verdade.
O amor é bom, não quer o mal,
Não sente inveja ou se envaidece.
O amor é o fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor eu nada seria.
É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É um não contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder.
É um estar-se preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É um ter com quem nos mata a lealdade.
Tão contrário a si é o mesmo amor.
Estou acordado e todos dormem.
Todos dormem. Todos dormem.
Agora vejo em parte,
Mas então veremos face a face.
É só o amor! É só o amor
Que conhece o que é verdade.
Ainda que eu falasse
A língua dos homens
E falasse a língua dos anjos,
Sem amor eu nada seria.
Essa
letra (e música) transformou-se em um hino para os jovens daquela época e, até
hoje, é possível ver que a poesia de Renato Russo permanece viva. Dessa forma,
associando-se o clássico soneto de Camões à letra e música de um rock popular da Legião Urbana,
conferiu-se uma atualidade aos versos com base no tema abordado – o amor –, que é um sentimento universal
e atemporal.
Sem
dúvida, a estreita ligação entre Renato Russo (e a Legião Urbana) com o público
se deve, em parte, aos mecanismos de interação: linguagem direta, vocabulário
acessível ao seu público alvo, temas recorrentes ao universo dos jovens, como
amor, sexo, drogas, festas e violência urbana, o que pode ser observado no
trecho da canção "Será" (primeiro LP da banda Legião Urbana): "Tire suas mãos de mim / Eu não pertenço a você / Não é
me dominando assim / Que você vai me entender";
ou, então, neste trecho da canção "Geração Coca-Cola" (tornou-se um
hino entre os jovens): "Somos os filhos da
revolução / Somos burgueses sem religião / Nós somos o futuro da nação /
Geração Coca-Cola". A linguagem, os temas que abordava,
o estilo musical, o rock e o jeito
rebelde/ingênuo com que executava suas canções, faziam de Renato Russo um
porta-voz da juventude dos anos 80/90, fato este comprovado pela alta vendagem
dos LPs da banda, bem como pelo sucesso de público nos shows.
Aprecio muito a junção de
uma obra canônica a uma popular[7]:
o poema Fanatismo (de Florbela Espanca[8]),
é cantado pelo cantor Fagner[9]: “Minh' alma, de sonhar-te, anda perdida/ meus olhos andam
cegos de te ver / Não és sequer a razão do meu viver /pois que tu és já toda
minha vida. Arnaldo Antunes “declama” uma famosa
passagem da obra O primo Basílio, de Eça de Queirós, na música Amor
I love you, cantada na voz de Marisa Monte[10]:
“E Luísa tinha suspirado, tinha beijado o papel
devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e
o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo
ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si
mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente
interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia
a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!" (QUEIRÓS, Eça de. O
primo Basílio. 15ª edição, São Paulo: Ática, 1994, p. 134).
Certa
vez, uma professora do curso de Letras, a “Cidinha” (Aparecida do Carmo Frigeri
Berchior[11]),
teceu um comentário simples, mas ao mesmo tempo muito profundo sobre a inserção
da poesia em nossas vidas. Certamente não vou conseguir reproduzi-lo com
exatidão, mas a sua fala, em outras palavras, mostrava que a poesia é inerente
ao ser humano; ela está em toda a parte, inclusive dentro de nós e, talvez seja
por isso que muitas pessoas não consigam percebê-la, não consigam notá-la – a
proximidade “embaça” a visão. Para percebê-la, portanto, é preciso estar com
todos os sentidos em alerta (de repente um perfume, um sabor, um toque, uma
imagem... podem desencadear um sentimento que estava adormecido e nos transportar
para uma outra época, um outro momento que, de certa forma, tenha marcado a
nossa vida).
Hoje
eu busco a poesia a todo o instante, em cada gesto, em cada olhar, em cada
palavra, em cada sorriso (ou em cada lágrima), em cada cena. A poesia vive a me
provocar e ela está sempre presente em minha vida. Posso (com)provar sua
presença a me acompanhar:
Há algum tempo, na rodovia que liga
Pitangueiras a Bebedouro, vinha sozinha dirigindo meu carro quando me deparei
com uma queimada de cana – o fogo ia alto e a fumaça tomou conta da pista, fazendo
com que todos tivessem que parar por motivos de segurança. Era um final de
tarde, o sol estava se pondo e o vermelho deste se confundia com o vermelho do
fogo – era um cenário de pura magia e pura poesia: o cheiro forte da cana
queimando, o barulho do fogo na plantação, a visão escarlate da mistura de
vermelhos – era tudo extremamente emocionante!
Quis naquele momento ter o dom de escrever um
poema, tentar expressar com palavras algo que eu apenas senti. Certamente Camões
ou outro poeta da mesma estirpe conseguisse facilmente essa proeza, eu, fiquei
apenas com o registro visual e o sentimento daqueles momentos de pura poesia.
Hoje posso assegurar que a minha professora estava certa: a poesia está em toda
parte, inclusive dentro de nós.
BIBLIOGRAFIA:
ANDRADE, Carlos
Drummond de. Procura da Poesia. Disponível
em: http://letras.terra.com.br/carlos-drummond-de-andrade/460651/.
Acesso em 03/12/2011.
ESPANCA,
Florbela. Fanatismo. Livro de Sóror
(1923). Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/flor1.html#fanatismo.
Acesso em 03/12/2011.
FAGNER,
Raimundo. Fanatismo (de Florbela
Espanca). Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=qIhme8AY8Dk.
Acesso em 03/12/2011.
MONTE,
Marisa. Amor I love you. Disponível em (vídeo): http://www.youtube.com/watch?v=5TdTacizYdA&feature=search.
Acesso em 03/12/2011.
QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio. 15ª edição, São Paulo: Ática, 1994, p. 134.
RUSSO, Renato. Biografia. Disponível em http://www.renatorusso.com.br.
[1] Vídeo disponível em http://www.youtube.com/watch?v=0unax_7VH64,
“Procura da Poesia”, de Carlos Drummond de Andrade na voz do ator Paulo Autran.
[2] Eu ainda possuo este caderno. Encontra-se amarelado pelo tempo, sua
capa já sofreu algumas intervenções com fita adesiva, mas eu o mantenho, como
uma relíquia.
[3] Renato Manfredini Júnior, nome de batismo,
é trocado por Renato Russo em homenagem a dois
pensadores, o inglês Bertrand Russell e o filósofo Jean-Jacques Rousseau,
bem como ao pintor primitivista Henri Rousseau.
[4] Site Oficial de Renato Russo: Disponível em http://www.renatorusso.com.br.
[5] Trabalhei esta letra com os meus alunos de 6ª série/7º ano (Caderno
do Professor/Caderno do Aluno – Currículo do Estado de São Paulo). Fizemos a
leitura do texto, discutimos a temática (oralidade), ouvimos a música,
assistimos ao videoclipe e realizamos as atividades propostas. Houve um
encantamento generalizado por parte dos alunos.
[6] Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=AKqLU7aMU7M.
[7] Entenda-se “popular” apenas como oposição ao que se considera
cânone. Não há, portanto, nenhuma menção pejorativa ao termo.
[8] ESPANCA, Florbela. Fanatismo.
Livro de Sóror (1923). Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/flor1.html#fanatismo.
[9] FAGNER, Raimundo. Fanatismo
(de Florbela Espanca). Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=qIhme8AY8Dk
[10] MONTE, Marisa; ANTUNES, Arnaldo. Amor I love you. Disponível
em (vídeo): http://www.youtube.com/watch?v=5TdTacizYdA&feature=search.
[11] Currículo Lattes.
Disponível em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=W8111817.
Acesso em 03/12/2011.
______________
Texto apresentado como "Questão Discursiva" no Curso de Língua Portuguesa - Redefor/UNICAMP.
Nenhum comentário:
Postar um comentário