05.03.2015
Nos acostumamos a acreditar que pensamento e prática são
compartimentos distintos da vida. Quem pensa o mundo não faz o mundo e
vice-versa. Mas, houve um tempo em que os sábios, eventualmente chamados de
cientistas ou artistas, circulavam por diversos campos da cultura. Matemática,
física, arquitetura, pintura, escultura eram matéria-prima do pensamento e da
ação. A revolução industrial veio derrubar a ideia do saber renascentista e,
desde o século 19, a especialização foi ganhando força.
Mas, sempre haverá quem nos lembre que a vida é produto de um
contexto, de um acúmulo de vivências e ideias. Pense num filósofo que pegou em
armas contra o nazismo para depois empunhar as ferramentas da retórica contra o
stalinismo, que reconhece a importância dos saberes dos povos originais sem
abrir mão de pensar e repensar a educação formal.
Com mais de 90 anos, o francês Edgar Morin, nascido
e criado Edgar Nahoum no início do século 20, é um dos mais respeitados
pensadores do nosso tempo. Com uma gigantesca produção literária, pedagógica e
filosófica. Em tempos de radicalismos, Morin é herdeiro do melhor do humanismo
francês. Em entrevista ao programa Milênio, Edgar Morin fala sobre o extremismo
e o significado da educação na contemporaneidade. Leia abaixo:
Gostaria de começar com uma questão generalista. Sociólogo,
antropólogo, filósofo, professor, escritor, e até, às vezes, jornalista. Qual a
melhor definição de Edgar Morin e por quê?
Edgar Morin: A melhor definição
seria não ter definição. De se bastar. A palavra “filósofo" talvez me
conviesse bem, mas hoje a filosofia, no geral, se fechou em si mesma e a minha
é uma filosofia que observa o mundo, os acontecimentos, etc. Sou muito
marginal, quer dizer, sou marginal em todas essas áreas. Então, sou aquele que
querem que eu seja.
Seria mais correto falar em um pensador
do estilo renascentista, alguém que mistura um pouco essas histórias todas?
Edgar Morin: Não exatamente que
mistura, mas que tenta fazer a ligação, que tenta ter uma cultura feita de
conhecimentos que hoje estão dispersos. Mas, é verdade que o Renascentismo foi
admirável pelos homens que tinham um conhecimento, não digo enciclopédico, mas
aberto a várias áreas. Se quiserem, acho que as perguntas fundamentais de cada
um a si mesmo, “quem somos nós, para onde vamos e de onde viemos?", são
questões fundamentais, precisamos respondê-las e não afastá-las.
A tragédia do nosso sistema de conhecimento atual é que ele
compartimenta tanto os conhecimentos que a gente não consegue se fazer essas
perguntas. Se perguntarmos “O que é o ser humano?", não teremos respostas,
porque as diferentes respostas estão dispersas. E, no fundo, é isso que chamo
de pensamento complexo, um pensamento que reúne conhecimentos separados.
E esse pensamento complexo do qual o senhor fala estaria em
oposição a um pensamento simples. Como se dá esse duelo hoje, num setor que o
senhor conhece bem, o ensino?
Edgar Morin: O que chamo de
desafio da complexidade é que estamos em um mundo onde encontramos problemas
tão difíceis e separados, e uni-los. Como fazer isso? Eu fiz um trabalho ao
longo de muitos anos para, de certa forma, elaborar um método que possibilite a
união desses saberes, porque não podemos simplesmente sobrepor, é preciso
articulá-los.
Acredito que, para uma melhor
compreensão da realidade, para entender quem somos, que você é um ser complexo,
que eu sou um ser complexo, não podemos estar reduzidos a um único aspecto da
personalidade, para saber que a sociedade é complexa, para entender a
globalização. Acredito que é sim necessário um pensamento assim, senão temos um
pensamento mutilado, o que é muito grave, porque um pensamento mutilado leva a
decisões erradas ou ilusórias.
E como traduzir isso para os alunos, para as novas gerações, por
meio do ensino? Como é possível encarar essa tarefa tão difícil para os
educadores, para aqueles que estudam a educação e querem passar adiante esse
pensamento mais complexo, com uma visão um pouco mais ampla do mundo do que
aquela homogeneizada, simplista, com certezas bastante frágeis?
Edgar Morin: Eu proponho, no
ensino, a introdução de temas fundamentais que ainda não existem. Quer dizer,
proponho introduzir o tema do conhecimento, pois damos conhecimento sem nunca
saber o que é o conhecimento. Mas, como todo conhecimento é uma tradução
seguida de uma reconstrução, sempre existe o risco do erro, o risco de
alucinações, sempre.
Eu proponho o método de incluir esses
temas, de incluir o tema da compreensão humana. É preciso ensinar a compreensão
humana, porque é um mal do qual todos sofrem em graus diferentes. Começa na
família, onde filhos não são compreendidos pelos pais e os pais não entendem
seus filhos. Pode continuar na escola, com os professores e os colegas.
Continua na vida do trabalho, no amor e acho que temos que ensinar também a
enfrentar as incertezas. Porque em todo destino humano há uma incerteza desde o
nascimento. A única certeza é a morte e não sabemos quando. Mas, é claro que
estamos em meio, não apenas das incertezas que chamaria de normais, de saúde,
casamento, trabalho, mas também uma incerteza histórica impressionante.
Antes, a gente achava que existia um progresso certo e agora o
futuro é uma angústia. Por isso, suportar, enfrentar a incerteza é não
naufragar na angústia, saber que é preciso, de certa forma, participar com o outro,
de algo em comum, porque a única reposta aos que têm a angústia de morrer é o
amor e a vida em comum.
Isso nos traz a um dos muitos caminhos que temos para nos conhecer
e conhecer o outro, que é a participação política. E o senhor, desde muito
cedo, teve uma participação política muito importante. Na Resistência e,
depois, com suas relações no Partido Comunista. Mas, muito cedo também, o
senhor aprendeu a fazer essa autocrítica e não hesitou em criticar duramente o
Partido Comunista e a ascensão da URSS Stalinista, depois da China maoísta.
Mais recentemente, a globalização. Politicamente, hoje, qual a luta que o
senhor considera que vale a pena lutar? Sabemos que o mundo vive uma crise
profunda de representação nas democracias, nos partidos, nos sindicatos. Como
fazer essa luta política?
Edgar Morin: Antes de mais nada,
é preciso entender bem que estamos ameaçados, cada vez mais, por duas
barbáries. A primeira barbárie a gente conhece, vem desde os primórdios da
história, que é a crueldade, a dominação, a subserviência, a tortura, tudo
isso. A segunda barbárie, ao contrário, é uma barbárie fria e gelada, a do
cálculo econômico. Porque quando existe um pensamento fundado exclusivamente em
contas, não se vê mais os seres humanos. O que se vê são estatísticas, produtos
burros. No fundo, o cálculo, que é útil, mas como instrumento, se torna um meio
de conhecimento, mas de falso conhecimento, que mascara a realidade humana.
No fundo, assim que entra o cálculo, os
humanos são tratados como objetos. E hoje, com o domínio justamente do poder e
do dinheiro, com o domínio do mundo burocrático, tudo isso, é o reino da
barbárie gelada. Se preferir, é preciso repensar a política e nós estamos na
pré-história desse momento. É preciso saber se as forças negativas, a corrente
negativa vai ser mais forte do que as forças positivas que tentam se levantar
hoje no mundo e são ainda muito dispersas.
Como fazer com que todas essas ferramentas, que existem e foram
desenvolvidas nas últimas décadas, possam ser utilizadas de uma forma, digamos,
mais positiva?
Edgar Morin: Antes de mais nada,
é verdade que informação não é conhecimento. Conhecimento é a organização das
informações. Então, estamos imersos em informações e como elas se sucedem dia a
dia, de certa forma, não temos como ter consciência disso. De outra parte, os conhecimentos,
como eu disse, estão dispersos. É preciso uni-los, mas falta esse pensamento
complexo. Dito isso, quando pensamos sobre a internet, a internet virou uma
força incrível, eu diria que em todas as direções, tanto para o lado negativo
quando para o positivo.
O que há de extraordinário na internet
e em todos esses meios que você citou é que, hoje, um Estado pode controlar um
indivíduo em todos os seus gestos e atos, mesmo quando ele está na rua lendo um
jornal. Podemos ser controlados. Mas, ao mesmo tempo, através da internet, um
ou dois indivíduos razoavelmente talentosos em matemática podem decifrar os
segredos do Pentágono, segredos diplomáticos dos mais importantes do Estado
mais forte do mundo.
O senhor acha que neste mundo, com tantas coisas que regridem, um
país como o Brasil que o senhor conhece tanto tem algo a ensinar aos outros
notadamente quando se vê essa sociedade mestiça, essa mistura que existe de
verdade. Mesmo que tenhamos os nossos problemas com o racismo, nossos problemas
de exclusão e tudo isso. Mas, o senhor acha que essa sociedade brasileira, com
todos esses problemas, tem algo a ensinar?
Edgar Morin: Apesar dos limites,
digamos, do caráter de segregação social, é uma sociedade indiscutivelmente
mestiça, que conseguiu integrar contribuições vindas da África. Nunca em outro
país a contribuição africana foi tão intensamente integrada nos costumes, nem
que seja na gastronomia, nas danças, nos cantos. É um país muito interessante
também onde, no Sul, que tem muitos imigrantes alemães e italianos e o
Nordeste, que é muito diferente com sua população, os caboclos... Apesar dessa
grande diversidade, é um país que nunca quis se separar. Vejam a Itália,
a Itália do Norte quer se separar da do Sul, veja a Inglaterra, a Escócia quer
deixar o Reino Unido.
No Brasil, mesmo com toda essa
extraordinária heterogeneidade, existe uma cultura comum que mantém a unidade.
Ou seja, pra mim, o Brasil é um grande estimulante. Um estimulante intelectual,
mas também humano, pois tem um calor humano, um sentimento de familiaridade,
que também perdemos na França e encontramos, muito vivo, no Brasil.
Eu já o vi e li dizendo que o monoteísmo era o flagelo da
humanidade. Queria saber se o senhor mantém essa posição hoje, frente ao que
vemos no Oriente Médio e nas lutas nacionalistas que misturam a religião à
importância nacional.
Edgar Morin: A fórmula é
parcialmente verdadeira. Por quê? Porque há outro aspecto muito presente no
Cristianismo, sobretudo no Cristianismo de caráter evangélico, e também no
Islã, onde também há como princípio um Deus magnânimo e misericordioso. Existe
um universalismo, porque o Cristianismo e o Islã se dirigem a todos os homens,
a todos os seres humanos, não importa a raça. Quando vemos a história do
Cristianismo, há uma renovação dessa fonte de fraternidade e de evangelismo.
Mas, quando olhamos a mesma história do Cristianismo, também vemos guerras
religiosas, a Inquisição, as perseguições, as fogueiras, as cruzadas e tudo
isso. E quando olhamos para a história do Islã também.
Dito isso, o que é o monoteísmo? É o
que vê a unidade no mundo. O que é o politeísmo? É o que vê a diversidade no
mundo, que vê, como os antigos gregos, mas também no Candomblé, vocês têm
Iemanjá, deusa das águas, têm os outros, dá pra dizer que são complementares.
Uns veem a diversidade e outros a unidade. Mas, o politeísmo sempre foi mais
tolerante do que o monoteísmo, sempre foi menos dogmático. E, se hoje, o
Hinduísmo fica agressivo contra o Islã é que ele próprio vive uma luta entre
duas religiões, mas, em princípio, as religiões politeístas são mais... Mas,
como estou fora dessas religiões, apenas constato. Acredito que a virtude dos
politeístas seja a de respeitar também a natureza. Quando se tem a Pacha Mama,
da tradição andina, temos o amor da mãe terra. O Cristianismo separou, como
aliás o Islã, os dois tendo a mesma fonte, a Bíblia. Dizem que Deus criou o
homem à sua imagem, diferente da dos animais. Paulo disse que os humanos podem
ressuscitar, mas os animais não.
Criamos a dissociação com a natureza, acentuada pela civilização
ocidental, dizendo que, através da ciência e da tecnologia podemos dominar e
controlar a natureza. Mas, é preciso reencontrar o sentido da natureza de uma
forma não mais politeísta, mas humana, quer dizer, sentir essa vida, esse
sentimento que expressava Spinoza, que a criatividade e a divindade estão na
natureza.
Qual seria, então, na sua opinião, o maior desafio do ensino
escolar hoje no mundo? Fazer esse equilíbrio sociedade tecnológica e humana, o
equilíbrio entre o dinheiro e o saber, entre o humanismo e a individualidade?
Edgar Morin: Antes de mais nada,
é não se deixar contaminar pela lógica da empresa. Uma universidade não é uma
empresa, é como um hospital, não é uma empresa. A lógica não é a do lucro, não
é a dos benefícios, não é a do equilíbrio orçamentário, é outra lógica. Depois,
não obedecer ao dogma da avaliação. Avaliamos e avaliamos, quando, na
realidade, a avaliação também é um jeito de calcular que ignora a complexidade
das realidades humanas.
O objetivo do ensino deve ser ensinar a
viver. Viver não é só se adaptar ao mundo moderno. Viver quer dizer como,
efetivamente, não somente tratar as grandes questões de que falamos, mas como
viver na nossa civilização, como viver na sociedade de consumo. Produzimos coisas
descartáveis em vez de objetos reparáveis, que possam ser consertados. Então há
toda uma lógica e é preciso dar, no ensino, os meios àqueles que vão se tornar
adultos, de poder escolher alimentos, consumo, não usar o que não é bom e
favorecer o que tem qualidade e o que é artesanal.
Acho que é preciso ensinar não só a utilizar a internet, mas a
conhecer o mundo da internet. É preciso ensinar a saber como é selecionada a
informação na mídia, pois a informação sempre passa por uma seleção – como e
por quê? É preciso ensinar, há todo um ensinamento, para nossa civilização, que
não está pronto. Tem isso e ainda o ensino dos problemas fundamentais e
globais. Essa é a reforma fundamental que precisa ser feita.
Para terminar, professor, o que é que alimenta suas esperanças num
mundo melhor?
Edgar Morin: A esperança é a
ideia que o futuro já que é incerto e já que é desconhecido, pode justamente
ser melhor e, no fundo, meu sentimento profundo é que eu sou um pedacinho
temporário, numa gigantesca aventura, que é a da humanidade, que começou,
talvez, há sete milhões de anos, quando um primata virou bípede. Que continuou
e seguiu pela pré-história, a história, o fim dos impérios, os acontecimentos,
as guerras mundiais. Uma aventura absolutamente incrível. E como o passado é
incrível, eu sei que o futuro também será incrível.
Mas, sinto que faço parte dessa
totalidade, querendo ou não. Isso também me leva para frente. Não renuncio. Sem
querer, sou animado por esse sentimento de estar na aventura e quero também
dar, mesmo que seja pequena, minha contribuição a isso. É isso que também me
encoraja. Não tenho só esperança, tampouco desespero. Mesmo que saiba que a
vida é, ao mesmo tempo, magnífica e trágica.
Uma das minhas máximas favoritas é: “o que não se regenera,
degenera." Nada está estabelecido para sempre. Se você tem a democracia,
não é para sempre, pode degenerar. Se acabou com a tortura, não é para sempre,
pode voltar. Quer dizer, é preciso estar com as forças da regeneração e sentir
a necessidade dessas forças de regeneração me tonifica, me faz bem e espero
fazer o bem também.
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