Cilene Rodrigues
Ph. D. em linguística e professora da University College London
Correio Braziliense - 28/05/2011
Resposta ao título deste artigo é: podemos, mas seremos castigados. Quando o assunto é educação, nós, brasileiros, adoramos nos comparar com outros países. O que é normal, já que ocupamos o 73º lugar no ranking mundial para o índice de desenvolvimento humano. Então, para não perder o costume, aqui vai outra comparação: o debate em torno do livro Para uma vida melhor e a tentativa de legitimação do inglês afro-americano.
Em 1996, uma escola pública de Oakland, na Califórnia, aprovou uma resolução legitimando os direitos linguísticos dos afro-americanos, que passariam a receber instruções em inglês afro-americano. Os professores não versados nesse socioleto fariam cursos, pagos com recursos públicos, para aprendê-lo.
Criou-se um quiproquó. Em entrevista à CNN, o reverendo Jesse Jackson disparou: “Não se vai para a escola para aprender a falar lixo”. O colunista William Raspberry, do Jornal Washington Post, também mandou brasa contra, classificando o inglês afro-americano de inconsistente e incapaz de distinguir o certo do errado. Apesar da opinião contrária de linguistas, as autoridades governamentais entenderam que seria mesmo um erro aceitar tal resolução. O então secretário de educação, William Bennett, fez dele as palavras de Jesse Jackson. Diante disso, a escola de Oakland desfez-se da resolução original.
Semana passada, o Jornal Nacional, da Rede Globo, criou outro babado linguístico ao comunicar, já denunciando, que o MEC havia adotado o livro Para uma vida melhor, de Heloísa Ramos. A reportagem apresentou ao telespectador um recorte parcial do famigerado livro, onde a autora defende que é permitido falar “os livro”, embora corra-se o risco de ser vítima de preconceito linguístico.
Vieram ruidosas reações. Na internet , lê-se: “O MEC e o livro Por uma vida melhor: a celebração da ignorância (http:// pamarangoni.blogspot.com). Ou ainda: “Meio sinistro essa parada. Você aprende que “os menino pegou o peixe” não é errado numa situação, mas é inadequado em outra. (…). Então, para acabar o texto, vou usar um frase de Uilian Cheikspi: tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim.” (http:// tiporevista.com.br). No dia 15, o colunista Clóvis Rossi, da Folha de S.Paulo, também não perdoou: “ (…) o MEC deu aval a um livro que se diz didático no qual se ensina que falar “os livro” pode. Não pode, não, está errado. É ignorância, pura ignorância, má-formação educacional, preguiça do educador em corrigir os erros.”
Assim como aconteceu nos Estados Unidos, linguistas brasileiros argumentam em vão a favor da decisão do MEC e do livro de Heloísa, enquanto a critíca defende cegamente a separação entre certo e errado, alegando que seguir as regras da gramática tradicional é importante para a unidade nacional. Será? Nas ruas do Egito fala-se um dialeto árabe coloquial, mas, na escrita e nos meios de comunicação, usa-se o árabe padrão. Embora essas variantes sejam bastante diferentes entre si, a sua coexistência não impede a união dos egípcios em torno da mesma nação. Tanto não impede, que eles acabaram com uma ditadura perniciosa na base do grito. Já o antigo Estado da Iogoslávia ruiu, embora sérvio e croata sejam línguas mutuamente inteligíveis.
A variação linguística pode ter consequências interessantes. Se não tivesse existido o latim vulgar, o portugês, “última flor do Lácio, inculta e bela”, não teria nascido ou seria bem diferente do que é. Viu? As regras “corretas” de hoje foram um dia tidas como incultas, filhas de pais ignorantes.
Voltemos à comparação entre a decisão do MEC e resolução de escola de Oakland. Os principais interessados no debate preferem o silêncio. Em 1996, a comunidade afro-americana não protestou contra as críticas ao seu dialeto. Os brasileiros falantes da variante descrita por Heloísa também permanecem calados. Por quê? Porque as pessoas têm medo, medo de serem vítimas de bullying social, de preconceito. Preconceito contra a língua? Não, preconceito contra quem a fala, contra o pobre. Já pensou os pobres com a boca no trombone? Deus nos livre, roga a elite. É preciso mantê-los sem voz. Para isso, alega-se, com base no autoritarismo, que eles falam errado.
Merecemos respeito naquilo que nos identifica como indivíduos e como parte de um grupo social: a maneira de nos expressar. Temos também o direito de aprender. Aprender outras línguas, outros dialetos. Aprender que a expressão “tá legal, eu aceito o argumento, mas não altere o samba tanto assim” não é de William Shakespeare, mas de Martinho da Vila. Mas para fazer valer nossos direitos é preciso romper com o estabelecido, subverter as regras, dar o grito, não importa em que variante linguística. A verdade é que nessa selva, onde predominam os interesses da classe dominante, toda mudez será castigada.
Em 1996, uma escola pública de Oakland, na Califórnia, aprovou uma resolução legitimando os direitos linguísticos dos afro-americanos, que passariam a receber instruções em inglês afro-americano. Os professores não versados nesse socioleto fariam cursos, pagos com recursos públicos, para aprendê-lo.
Criou-se um quiproquó. Em entrevista à CNN, o reverendo Jesse Jackson disparou: “Não se vai para a escola para aprender a falar lixo”. O colunista William Raspberry, do Jornal Washington Post, também mandou brasa contra, classificando o inglês afro-americano de inconsistente e incapaz de distinguir o certo do errado. Apesar da opinião contrária de linguistas, as autoridades governamentais entenderam que seria mesmo um erro aceitar tal resolução. O então secretário de educação, William Bennett, fez dele as palavras de Jesse Jackson. Diante disso, a escola de Oakland desfez-se da resolução original.
Semana passada, o Jornal Nacional, da Rede Globo, criou outro babado linguístico ao comunicar, já denunciando, que o MEC havia adotado o livro Para uma vida melhor, de Heloísa Ramos. A reportagem apresentou ao telespectador um recorte parcial do famigerado livro, onde a autora defende que é permitido falar “os livro”, embora corra-se o risco de ser vítima de preconceito linguístico.
Vieram ruidosas reações. Na internet , lê-se: “O MEC e o livro Por uma vida melhor: a celebração da ignorância (http:// pamarangoni.blogspot.com). Ou ainda: “Meio sinistro essa parada. Você aprende que “os menino pegou o peixe” não é errado numa situação, mas é inadequado em outra. (…). Então, para acabar o texto, vou usar um frase de Uilian Cheikspi: tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere o samba tanto assim.” (http:// tiporevista.com.br). No dia 15, o colunista Clóvis Rossi, da Folha de S.Paulo, também não perdoou: “ (…) o MEC deu aval a um livro que se diz didático no qual se ensina que falar “os livro” pode. Não pode, não, está errado. É ignorância, pura ignorância, má-formação educacional, preguiça do educador em corrigir os erros.”
Assim como aconteceu nos Estados Unidos, linguistas brasileiros argumentam em vão a favor da decisão do MEC e do livro de Heloísa, enquanto a critíca defende cegamente a separação entre certo e errado, alegando que seguir as regras da gramática tradicional é importante para a unidade nacional. Será? Nas ruas do Egito fala-se um dialeto árabe coloquial, mas, na escrita e nos meios de comunicação, usa-se o árabe padrão. Embora essas variantes sejam bastante diferentes entre si, a sua coexistência não impede a união dos egípcios em torno da mesma nação. Tanto não impede, que eles acabaram com uma ditadura perniciosa na base do grito. Já o antigo Estado da Iogoslávia ruiu, embora sérvio e croata sejam línguas mutuamente inteligíveis.
A variação linguística pode ter consequências interessantes. Se não tivesse existido o latim vulgar, o portugês, “última flor do Lácio, inculta e bela”, não teria nascido ou seria bem diferente do que é. Viu? As regras “corretas” de hoje foram um dia tidas como incultas, filhas de pais ignorantes.
Voltemos à comparação entre a decisão do MEC e resolução de escola de Oakland. Os principais interessados no debate preferem o silêncio. Em 1996, a comunidade afro-americana não protestou contra as críticas ao seu dialeto. Os brasileiros falantes da variante descrita por Heloísa também permanecem calados. Por quê? Porque as pessoas têm medo, medo de serem vítimas de bullying social, de preconceito. Preconceito contra a língua? Não, preconceito contra quem a fala, contra o pobre. Já pensou os pobres com a boca no trombone? Deus nos livre, roga a elite. É preciso mantê-los sem voz. Para isso, alega-se, com base no autoritarismo, que eles falam errado.
Merecemos respeito naquilo que nos identifica como indivíduos e como parte de um grupo social: a maneira de nos expressar. Temos também o direito de aprender. Aprender outras línguas, outros dialetos. Aprender que a expressão “tá legal, eu aceito o argumento, mas não altere o samba tanto assim” não é de William Shakespeare, mas de Martinho da Vila. Mas para fazer valer nossos direitos é preciso romper com o estabelecido, subverter as regras, dar o grito, não importa em que variante linguística. A verdade é que nessa selva, onde predominam os interesses da classe dominante, toda mudez será castigada.
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